CapĂtulo 1
Otto sentia seu sangue ferver nas veias. Em poucos instantes seu fôlego quase zerara. Os olhos haviam mudado de cor, tomando um tom amarelado enquanto ele se focava no alvo. Os longos cabelos castanhos do rapaz pingavam devido ao suor. Ele encarava firmemente o monstruoso Dave, um soldado que media duas vezes o seu tamanho e era força bruta pura.
O treinamento ministrado pela OrganizaĂ§Ă£o Mitty era relativamente simples qunado comparado ao proporcionado por sua famĂlia, porĂ©m Otto estava exausto depois de um dia inteiro de lutas contra oponentes muito maiores que ele. Seu semblante era totalmente o oposto do adversĂ¡rio, que se preparava para mais uma investida. Parecia que alguĂ©m de dentro da OrganizaĂ§Ă£o estava tentando sabotar a entrada do rapaz, sempre colocando obstĂ¡culos impossĂveis para serem transpostos, fossem eles algumas missões inventadas em lugares perigosos ou uma sĂ©rie de lutas contra dez soldados de elite.
O vento soprava no campo de treino e, enquanto alguns membros com cargo mais alto da OrganizaĂ§Ă£o assistiam a luta com olhar de desdĂ©m em relaĂ§Ă£o a Otto, havia uma jovem ruiva que acompanhava a luta. Se tratava de FelĂcia, cujos olhos azuis estavam fixos na postura de Otto. Frente a frente com um dos oponentes mais fortes que havia enfrentado ao longo dos treinos, o rapaz sentia o olhar da moça focado em si. O jovem nĂ£o desistiria facilmente da luta.
- Vai usar o mesmo truque enovamente? Rapazinho, vocĂª nĂ£o tem gĂ¡s para lidar comigo por mais tempo. - bradou Dave, ao perceber os olhos amarelados do adversĂ¡rio.
Otto nĂ£o ligava para a provocaĂ§Ă£o. Sabia que a energia estava no limite, mas precisava apostar tudo que tinha naquele Ăºltimo golpe. Que viessem mais lutas depois, mas ele nĂ£o cairia ali. A tonalidade amarelada em seus olhos ficou mais forte. O jovem investiu contra o adversĂ¡rio e conseguiu perceber tudo que se passava ao seu redor. Ele pode sentir desde os pĂ¡ssaros sobrevoando o campo de treino atĂ© a poeira se levantando a cada movimento. NĂ£o era Otto que ficava mais rĂ¡pido, era o mundo que ficava mais lento. A percepĂ§Ă£o de Dave era outra, ao ver o adversĂ¡rio se movendo em uma velocidade absurda. O soldado grandalhĂ£o tentou se defender, mas foi impossĂvel.
Otto foi rĂ¡pido ao desferir cinco socos com precisĂ£o cirĂºrgica nas pernas do oponente, que caiu em questĂ£o de segundos. O soldado nĂ£o aguentaria mais um embate e desistiu. Surpresos, os supervisores que acompanhavam o treinamento declararam que aquela etapa estava concluĂda.
- Falta apenas uma Ăºltima atividade que lhe serĂ¡ anunciada em breve, e vocĂª poderĂ¡ ser considerado um membro da OrganizaĂ§Ă£o, jovem Fanyc. Por enquanto vĂ¡ descansar, mas se lembre que poderemos lhe chamar a qualquer momento que nos for conveniente. - disse Alain Bornaz, membro de elite que analisava as lutas.
A comitiva dos membros de alto escalĂ£o saiu do local por uma das portas que levavam atĂ© a sede, enquanto o rapaz e seu oponente reuniam forças para se levantar.
- Devo admitir que vocĂª me deu muito trabalho, rapaz. - disparou Dave enquanto se erguia.
- Obrigado pelo... Err...logio? - Otto estava confuso.
- Pode considerar que sim. É a primeira vez que vejo um oponente se fortalecer durante uma luta. E dominar a Visio em pleno campo de batalha nĂ£o Ă© algo que todo mundo consegue.
Visio era o nome da habilidade que Otto usara durante o combate. Assim que ativada, ela permitia ao usuĂ¡rio uma percepĂ§Ă£o maior de tudo que o envolvia, fazendo com que seu cĂ©rebro agisse mais rĂ¡pido e enxergasse as coisas de forma mais clara. A Visio era usada geralmente por soldados de elite, mas a famĂlia Fanyc havia explorado suas possibilidades, a transformando em algo comum aos seus descendentes. UsuĂ¡rios comuns conseguiam desenvolver trĂªs nĂveis da habilidade, sendo o Ăºltimo alcançado por aqueles considerados quase deuses, enquanto os Fanyc conseguiam alcançar nĂveis ainda mais altos.
- VocĂª percebeu, nĂ£o foi? - questionou Otto.
- SĂ³ nĂ£o viu quem nĂ£o quis, rapaz. VocĂª chegou ao terceiro nĂvel. - Dave respondeu.
- Na verdade estĂ¡ mais para 1.5. NĂ£o alcancei nem o segundo ainda. - Otto afirmou, sem jeito.
- Ainda no primeiro? Garoto, nĂ£o minta pra mim.
- NĂ£o estou faltando com a verdade, senhor. Sou considerado um dos mais atrasados quando se trata de habilidades na minha famĂlia. - a sinceridade no olhar de Otto era clara.
- Que seja. Se vocĂª luta dessa forma e ainda nĂ£o Ă© desenvolvido, mal posso esperar para quando for moldado pela OrganizaĂ§Ă£o.
Dave finalmente tinha forças para caminhar. NĂ£o admitira, mas os golpes que recebeu ainda doĂam. Em todos os seus mais de dois sĂ©culos vividos ele nunca havia enfrentado alguĂ©m com tamanha força e potencial quanto Otto. Pensava consigo que o garoto seria excepcional, e saiu do campo de treino.
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Assim que todos saĂram do campo de treino FelĂcia se aproximou de Otto. Ela preparava as mĂ£os para, mais uma vez, curar os estragos que o jovem sofrera durante o dia. Seus cabelos ruivos balançavam furiosamente, refletindo a expressĂ£o que o rosto da moça apresentava.
- É bom vocĂª aprender a se curar rĂ¡pido. Eu nĂ£o posso perder todo um dia de serviço do esquadrĂ£o e ficar te observando apanhar. - bradou FelĂcia.
- Apanhar? NĂ£o Ă© bem assim. Eu passei por cima de cada um dos adversĂ¡rios que a OrganizaĂ§Ă£o me impĂ´s. Eles apanharam de mim! - respondeu Otto, elevando a voz.
- EntĂ£o me explica suas roupas estarem rasgadas e todos esses machucados no seu corpo. Seu idiota! - falou a moça, enquanto as mĂ£os brilhavam tocando os ferimentos no corpo de Otto.
- Se nĂ£o quer cuidar de mim entĂ£o nĂ£o assista as minhas sessões! É tĂ£o simples, senhorita FelĂcia Stewart. Se nĂ£o quiser se incomodar com meus problemas, cuide duas suas missões! - o jovem parecia furioso.
Otto nĂ£o chamava FelĂcia pelo nome completo em situações comuns. SĂ³ fazia isso quando a moça o irritava. Ao ver que havia desestabilizado o rapaz ela caiu em si e mudou sua expressĂ£o.
- Me desculpa. É que nĂ£o suporto ver vocĂª brigando sem necessidade. NĂ£o precisa provar nada pra ninguĂ©m, Otto!
Ele nĂ£o respondeu de imediato. Percebeu que FelĂcia foi rĂ¡pida em curar seus ferimentos e entĂ£o se levantou. Olhou ao redor e viu que estava escurecendo. Muitas horas haviam se passado desde o começo da sessĂ£o, e entĂ£o ele se deu conta de que a moça estava presente desde o inĂcio, nĂ£o perdendo nenhuma luta e esperando que tudo acabasse para amparĂ¡-lo. Otto abaixou a guarda e abraçou FelĂcia.
- O que estĂ¡ acontecendo Ă© muito maior do que eu. É o nome da minha famĂlia que estĂ¡ em jogo. É a paz da minha mĂ£e e dos meus irmĂ£os, e quem sabe atĂ© dos descendentes que estĂ£o por vir. Sei que nĂ£o gosta do que tem visto desde que meu treinamento aqui começou. EstĂ£o pegando pesado pra me tirar fora, mas eu preciso conseguir, e preciso que continue sendo forte, FelĂcia. - Otto falou em seu ouvido.
A moça entendia o que estava acontecendo, mas nĂ£o queria aceitar. Ela gostava de Otto desde que eram pequenos. Era sempre protegida por ele e quando cresceu os papĂ©is se inverteram. Como sua famĂlia tinha boa relaĂ§Ă£o com a OrganizaĂ§Ă£o ela nĂ£o teve maiores dificuldades para passar pelo treinamento e se alistar em um dos esquadrões. Fazia pequenas missões e tinha renda para se sustentar. Os Fanyc, no entanto, eram considerados renegados pela OrganizaĂ§Ă£o, que sĂ³ nĂ£o havia declarado uma guerra aberta porque saibam da influĂªncia que a famĂlia tinha com pessoas importantes. Otto tentava acalmar os Ă¢nimos de todos ao passar pelo treinamento e almejava criar um bom relacionamento com Andrew Padilha, o diretor. SĂ³ assim a perseguiĂ§Ă£o pararia, ou ao menos ele acreditava nisso. PorĂ©m doĂa em FelĂcia ver que o jovem sofria tanto ao lutar por um ideal. De repente a moça começou a chorar nos braços de Otto.
O rapaz a abraçou ainda mais forte e percebeu qual a motivaĂ§Ă£o do choro de FelĂcia. A partir daquele momento ela chorava nĂ£o por apenas ver o fardo que Otto carregava, mas sim porque decidiu carregar o peso do mundo junto com ele. Durante aqueles minutos, enquanto a noite começava a cair, FelĂcia sĂ³ pensava na felicidade de Otto, enquanto ele sĂ³ pensava na felicidade dela. Juntos eles saĂram do campo de treino em silĂªncio, mas levavam consigo a certeza de que um estaria lĂ¡ pelo outro, sempre que fosse necessĂ¡rio.