sexta-feira, 22 de março de 2019

Sobre fliperamas, garotas e anos 90


Há alguns bons anos a década de 1980 virou sinônimo de nostalgia. Isso acabou influenciando direta e indiretamente muitas produções de entretenimento, entre elas a emblemática série Stranger Things (2016), que apela para uma ambientação extremamente fiel à década em questão, e por isso (e outros elementos) atraiu uma multidão de espectadores.

A questão aqui é que nostalgia vende, e muito. Há uma explicação bem óbvia pra isso, aliás. Muitos dos adultos de hoje eram crianças nas décadas de 1980 e 1990, o que significa que tinham pouquíssimo ou nenhum poder aquisitivo, mas é um público ativo economicamente, que consome muito e fica com os olhos marejados ao ver uma referência ou algo totalmente ambientado no período em que cresciam. E a bola da vez está na década de 1990.

Senta que lá vem obra ambientada nos anos 90. Foto: Divulgação/Netflix

Ah, a chamada era de ouro dos jogos eletrônicos. Enquanto o home gaming era marcado por uma disputa visceral entre Sega e Nintendo, as ruas de muitas cidades eram tomadas por centenas de apaixonados por arcade, ou, como ficaram conhecidos aqui, os saudosos fliperamas. É justamente nesse período que se passa HI Score Girl (ou High Score Girl, tanto faz), mangá escrito por Renuske Oshikiri, publicado pela Square Enix e que foi adaptado para a Netflix em formato de anime CGI.
Ambientado no final da década de 1980 e começo dos anos 90, o mangá/anime conta a história de Haruo Yaguchi, um pentelho insuportável do fundamental viciado em jogos. E quando falo insuportável, é porque o protagonista é mostrado de início como uma criança extremamente chata e naquela idade em que garotos e garotas são vistos quase que como inimigos mortais uns dos outros.

O diferencial da obra aparece logo no começo, focando na paixão de Haruo por games. Ele é o tipo de criança que passa todo o tempo livre em lojas com fliperamas, algo que acaba sendo visto com maus olhos pelos colegas de classe do garoto. Por conta do vício, Yaguchi não liga pra coisa alguma, e suas notas no colégio estão dentro do “dá pra passar”.

Eis que um dia ele encontra nos fliperamas um jogador que está arrebentando os demais na fila de Street Fighter 2. O tal player misterioso é na verdade uma colega de classe de Haruo, Akira Ono. E começa aí uma história de amizade – e, mais tarde, amor – entre os dois. Típico roteiro de shounen sem vergonha, não é mesmo?

Acontece que HI Score Girl arrebentou com as minhas expectativas. Não é apenas sobre os jogos dos anos 90, ou só sobre a paixão ingênua entre dois estudantes do fundamental. A obra equilibra muito bem os elementos apresentados, enquanto acompanha o amadurecimento dos personagens. Lembram que falei sobre Haruo ser insuportável no início? Conforme vão passando os episódios ele se mostra repleto de camadas.

Quanto a Akira Ono, sem dúvidas a melhor personagem quase muda que tive o prazer de assistir. Ela não fala através de palavras, mas sim de gestos, atitudes e expressões faciais. O título da obra é referência direta a ela, uma garota nota dez nos estudos, vinda de família rica e com rotina de aprendizado desumana, que encontra nos fliperamas um alívio para o stress. Proibida de ter um console em casa, Akira aprende rápido nos fliperamas, superando Haruo nos jogos de luta e se tornando uma oponente à altura.
A clássica protagonista de games, Akira Ono. Foto: Divulgação/Netflix

Se o nome da obra é referência direta à garota, a garota é referência direta aos protagonistas de centenas de jogos da era de ouro e alguns títulos atuais. Me refiro aos heróis mudos, aqueles que sem ao menos dizer uma palavra se fazem entender e imprimem suas vontades ao mundo.
Confesso que me apaixonei pela forma como a história é conduzida desde seus momentos iniciais. As conversas entre Haruo e Akira acontecem nos jogos. Começam com a troca de socos entre Ryu e Zangief (porque ela adora jogar com tanks) e vão até as aventuras de Guy e Haggar nas ruas de Metro City.

No meio do caminho surge Koharu Hidaka, outra colega de Haruo e que entra na trama em meio a circunstâncias das quais não falarei para evitar, o máximo que consigo, spoilers. Koharu aprende com Yaguchi a gostar de jogos e, ao mesmo passo que desenvolve uma paixão pelos fliperamas, nutre sentimentos pelo protagonista. Se você sentiu cheirinho de clichê no começo, aqui pode ter certeza que rola uma espécie de triângulo amoroso. A essa hora você já deve imaginar que Haruo é apaixonado por Akira e o sentimento é recíproco, enquanto Koharu está muito afim do protagonista e não vê espaço algum na relação. Acertou em cheio.

Não são raros os momentos em que Haruo se pergunta sobre os sentimentos que tem em relação a Akira e, de repente... “Hei, tá sabendo que a Sony vai entrar no mercado de videogames?”. Parece um pouco exagerado e repentino, mas as coisas acontecem dessa forma por aqui. A mudança de foco do romance para jogos e vice-versa ocorre o tempo todo e, diversas vezes, me vi sorrindo feito bobo ao identificar um jogo ao qual dediquei horas aparecendo na tela.

Vale notar, aliás, que o amadurecimento emocional de Ono e Yaguchi aparece poucos minutos em alguns poucos episódios, na minha opinião. Não é como se fosse insuficiente, mas sinto que poderia ter sido mais explorado. A Netflix é conhecida por estender desnecessariamente algumas obras (Demolidor, Justiceiro, Punho de Ferro), enquanto outras não recebem a mesma atenção. Não é a primeira produção deles que sinto falta de mais tempo – vide Big Fish & Begonia – mas já sabemos que vem uma segunda temporada em 2019.
Será possível jogar com privacidade? Foto: Divulgação/Netflix

Por falar nisso, foi quase desumano o que a Netflix fez com quem gostou do anime. Lançaram, em 2018, 12 episódios, sendo o último com um gancho absurdo para continuação, que só saiu meses depois, especificamente no dia 20 de março de 2019. Ok, eles precisavam esperar a conclusão do mangá (o que ocorreu em setembro do ano passado) para encerrar a primeira temporada, mas, de qualquer forma, não gosto dessa ideia de lançar obras incompletas. E se o negócio todo fosse um fracasso de público na plataforma? Ficaríamos com 12 episódios sem nem ao menos a conclusão da trama proposta na primeira temporada? Dá agonia só de pensar nessa possibilidade.

Aliás, por falar em continuação, uma curiosidade interessante é que em 2014 o mangá teve sua publicação interrompida por um tempo. A responsável por isso foi a SNK Playmore, dona de propriedades como The King of Fighters e Samurai Showdown. No processo movido pela SNK, a desenvolvedora alegou que o mangá infringia seu copyright diretamente ao trazer personagens de suas franquias. Algum tempo depois a empresa entrou em acordo com a Square Enix e a publicação foi retomada.

No fim do dia, considero esta uma daquelas obras que chegam a "dar um quentinho no coração". Piegas? Com certeza! Mas, se você tem assinatura da Netflix, dê uma chance. HI Score Girl aposta suas fichas em conquistar o espectador falando sobre a nostalgia dos anos 1990, para depois prendê-lo com um enredo misturando isso a romance juvenil. Ao menos comigo deu certo, e muito.

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