Há alguns bons anos a década de 1980 virou sinônimo de
nostalgia. Isso acabou influenciando direta e indiretamente muitas produções de
entretenimento, entre elas a emblemática série Stranger Things (2016), que apela para uma ambientação extremamente
fiel à década em questão, e por isso (e outros elementos) atraiu uma multidão de
espectadores.
A questão aqui é que nostalgia vende, e muito. Há uma explicação
bem óbvia pra isso, aliás. Muitos dos adultos de hoje eram crianças nas décadas
de 1980 e 1990, o que significa que tinham pouquíssimo ou nenhum poder
aquisitivo, mas é um público ativo economicamente, que consome muito e fica com
os olhos marejados ao ver uma referência ou algo totalmente ambientado no
período em que cresciam. E a bola da vez está na década de 1990.
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Senta que lá vem obra ambientada nos anos 90. Foto: Divulgação/Netflix |
Ah, a chamada era de
ouro dos jogos eletrônicos. Enquanto o home
gaming era marcado por uma disputa visceral entre Sega e Nintendo, as ruas
de muitas cidades eram tomadas por centenas de apaixonados por arcade, ou, como ficaram conhecidos
aqui, os saudosos fliperamas. É justamente nesse período que se passa HI Score
Girl (ou High Score Girl, tanto faz), mangá escrito por Renuske Oshikiri,
publicado pela Square Enix e que foi adaptado para a Netflix em formato de
anime CGI.
Ambientado no final da década de 1980 e começo dos anos 90,
o mangá/anime conta a história de Haruo Yaguchi, um pentelho insuportável do
fundamental viciado em jogos. E quando falo insuportável, é porque o
protagonista é mostrado de início como uma criança extremamente chata e naquela
idade em que garotos e garotas são vistos quase que como inimigos mortais uns
dos outros.
O diferencial da obra aparece logo no começo, focando na
paixão de Haruo por games. Ele é o tipo de criança que passa todo o tempo livre
em lojas com fliperamas, algo que acaba sendo visto com maus olhos pelos
colegas de classe do garoto. Por conta do vício, Yaguchi não liga pra coisa
alguma, e suas notas no colégio estão dentro do “dá pra passar”.
Eis que um dia ele encontra nos fliperamas um jogador que
está arrebentando os demais na fila de Street Fighter 2. O tal player misterioso é na verdade uma
colega de classe de Haruo, Akira Ono. E começa aí uma história de amizade – e, mais
tarde, amor – entre os dois. Típico roteiro de shounen sem vergonha, não é mesmo?
Acontece que HI Score Girl arrebentou com as minhas
expectativas. Não é apenas sobre os jogos dos anos 90, ou só sobre a paixão
ingênua entre dois estudantes do fundamental. A obra equilibra muito bem os
elementos apresentados, enquanto acompanha o amadurecimento dos personagens.
Lembram que falei sobre Haruo ser insuportável no início? Conforme vão passando
os episódios ele se mostra repleto de camadas.
Quanto a Akira Ono, sem dúvidas a melhor personagem quase
muda que tive o prazer de assistir. Ela não fala através de palavras, mas sim
de gestos, atitudes e expressões faciais. O título da obra é referência direta
a ela, uma garota nota dez nos estudos, vinda de família rica e com rotina de
aprendizado desumana, que encontra nos fliperamas um alívio para o stress. Proibida de ter um console em casa, Akira aprende rápido
nos fliperamas, superando Haruo nos jogos de luta e se tornando uma oponente à
altura.
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A clássica protagonista de games, Akira Ono. Foto: Divulgação/Netflix |
Se o nome da obra é referência direta à garota, a garota é
referência direta aos protagonistas de centenas de jogos da era de ouro e alguns títulos atuais. Me
refiro aos heróis mudos, aqueles que sem ao menos dizer uma palavra se fazem
entender e imprimem suas vontades ao mundo.
Confesso que me apaixonei pela forma como a história é
conduzida desde seus momentos iniciais. As conversas entre Haruo e Akira
acontecem nos jogos. Começam com a troca de socos entre Ryu e Zangief (porque
ela adora jogar com tanks) e vão até
as aventuras de Guy e Haggar nas ruas de Metro City.
No meio do caminho surge Koharu Hidaka, outra colega de
Haruo e que entra na trama em meio a circunstâncias das quais não falarei para
evitar, o máximo que consigo, spoilers.
Koharu aprende com Yaguchi a gostar de jogos e, ao mesmo passo que desenvolve
uma paixão pelos fliperamas, nutre sentimentos pelo protagonista. Se você
sentiu cheirinho de clichê no começo, aqui pode ter certeza que rola uma
espécie de triângulo amoroso. A essa hora você já deve imaginar que Haruo é
apaixonado por Akira e o sentimento é recíproco, enquanto Koharu está muito
afim do protagonista e não vê espaço algum na relação. Acertou em cheio.
Não são raros os momentos em que Haruo se pergunta sobre os
sentimentos que tem em relação a Akira e, de repente... “Hei, tá sabendo que a
Sony vai entrar no mercado de videogames?”. Parece um pouco exagerado e
repentino, mas as coisas acontecem dessa forma por aqui. A mudança de foco do
romance para jogos e vice-versa ocorre o tempo todo e, diversas vezes, me vi
sorrindo feito bobo ao identificar um jogo ao qual dediquei horas aparecendo na
tela.
Vale notar, aliás, que o amadurecimento emocional de Ono e
Yaguchi aparece poucos minutos em alguns poucos episódios, na minha opinião.
Não é como se fosse insuficiente, mas sinto que poderia ter sido mais
explorado. A Netflix é conhecida por estender desnecessariamente algumas obras
(Demolidor, Justiceiro, Punho de Ferro), enquanto outras não recebem a mesma
atenção. Não é a primeira produção deles que sinto falta de mais tempo – vide Big
Fish & Begonia – mas já sabemos que vem uma segunda temporada em 2019.
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Será possível jogar com privacidade? Foto: Divulgação/Netflix |
Por falar nisso, foi quase desumano o que a Netflix fez com
quem gostou do anime. Lançaram, em 2018, 12 episódios, sendo o último com um
gancho absurdo para continuação, que só saiu meses depois, especificamente no
dia 20 de março de 2019. Ok, eles precisavam esperar a conclusão do mangá (o
que ocorreu em setembro do ano passado) para encerrar a primeira temporada,
mas, de qualquer forma, não gosto dessa ideia de lançar obras incompletas. E se
o negócio todo fosse um fracasso de público na plataforma? Ficaríamos com 12
episódios sem nem ao menos a conclusão da trama proposta na primeira temporada?
Dá agonia só de pensar nessa possibilidade.
Aliás, por falar em continuação, uma curiosidade
interessante é que em 2014 o mangá teve sua publicação interrompida por um
tempo. A responsável por isso foi a SNK Playmore, dona de propriedades como The King of Fighters e Samurai Showdown. No processo movido
pela SNK, a desenvolvedora alegou que o mangá infringia seu copyright
diretamente ao trazer personagens de suas franquias. Algum tempo depois a
empresa entrou em acordo com a Square Enix e a publicação foi retomada.
No fim do dia, considero esta uma daquelas obras que chegam a "dar um quentinho no coração". Piegas? Com certeza! Mas, se você tem assinatura da Netflix, dê uma chance. HI
Score Girl aposta suas fichas em conquistar o espectador falando sobre a nostalgia dos anos 1990, para depois prendê-lo com um enredo misturando
isso a romance juvenil. Ao menos comigo deu certo, e muito.
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